Formidavelmente Monstruoso
Pobres Criaturas (2023) | Crítica
“Eu me aventurei e não encontrei nada além de açúcar e violência.”
Era uma vez uma criatura bárbara, flutuando sob camadas empíricas de beleza e horror.
Aqueles que idealizam o conceito de liberdade sem limites sem perceber que é apenas libertinagem e confundem bases sólidas com amarras sociais, estão fadados a perecer na própria prisão, sem enxergar o véu que nos distingue das pobres criaturas.
“Pobres Criaturas”, dirigido por Yorgos Lanthimus, emerge como uma obra formidavelmente monstruosa, desafiando os limites convencionais do cinema e da reflexão. Inspirado no clássico “Frankenstein” de Mary Shelley, o filme transcende simplesmente a narrativa de uma mulher revivida com um cérebro infantil, para explorar os abismos da condição humana quando desprovida de regras sociais.
A assinatura autoral de Lanthimus é evidente, mesmo em meio a uma adaptação. Seus diálogos propositalmente robóticos são substituídos para que haja camadas de discussões sobre a natureza da liberdade, da moralidade e da própria existência. Enquanto muitas análises se concentram na opressão de uma era ou em aspectos feministas, o filme, por se tratar do respectivo diretor, sempre consegue chegar a algo de essência universal, mesmo que nesse caminho tenha que evidenciar os lados mais repulsivos da humanidade.
A intenção de Yorgos Lanthimus em provocar um choque de contrastes, onde há o grotesco e o mundano invadindo a beleza de uma paisagem de sonhos, é notável. Entretanto, mesmo diante dessa conquista, o filme deixa escapar uma oportunidade de refinamento e algo mais sutil e elevado ao se entregar a cenas de sexo em série, quase explícitas, o que resulta na perda de uma parte considerável do seu potencial.
Uma coisa é certa, de um jeito ou de outro, o filme sempre encontra algo para deixar o público pavorosamente perplexo, seja de forma negativa ou positiva.
Em sua estética retro-futurística, “Pobres Criaturas” mergulha o espectador em uma era vitoriana fantástica, repleta de um gótico lindamente estranho e um exagero e pompa nos figurinos, rico em detalhes, remetendo ao gênero steampunk. A mudança de preto e branco para tons super saturados espelha a jornada da protagonista, Bella Baxter, enquanto ela descobre e explora os prazeres efêmeros da vida.
O uso criativo de lentes distorcidas, da trilha lírica com cordas desafinadas e capítulos ilustrados de forma lúdica, solidifica o surrealismo, intensificando a estranheza, a desordem, o deslumbramento e a loucura que permeiam a narrativa.
O Dr. Godwin, interpretado por Willem Dafoe, é retratado como um deus deformado em todos os sentidos, incita reflexões sobre o bizarro, o conhecimento, a ética e a criação, enquanto Bella é sua criatura perfeita na superfície, mas com uma distorção interior, uma espécie de monstro de Frankenstein às avessas. À medida que ela evolui, mergulhando na filosofia e nos males do mundo em busca de significado, o filme questiona a natureza da satisfação e da liberdade.
A interpretação de Emma Stone é notável pela sua entrega e pela complexidade que o papel exige.
A reviravolta final, revelando Bella como uma versão espelhada de seu criador, ressoa como uma afirmação sobre a alma humana e sua busca pelo seu verdadeiro propósito. Infelizmente, o “deus” de Bella não era algo completo, e ela estaria fadada a seguir seus passos.
Em sua essência, “Pobres Criaturas” nos lembra que a ruptura de bases sólidas não representa a verdadeira liberdade, mas sim a nossa completa destruição.
Porque a humanidade é incansavelmente falha, mas sem suas estruturas como crenças, convicções, moralidade, emoções, laços, caráter e questionamentos, estaria fadada ao abismo, sem nada para justificar a beleza ou o horror de tudo ao seu redor, completamente desconexa e trancafiada em uma mera carcaça de vontades frívolas. Só restaria bestialidades em meio ao nada, um universo de pobres criaturas!