Jardim de Horrores
Zona de Interesse (2023) | Crítica
“A vida que desfrutamos vale muito o sacrifício.”
Era uma vez cinzas florescendo, uma chuva rubra inundando tudo, mas ninguém por lá estava vendo.
Uma sombra insidiosa que se insinua, obscurecendo a linha entre o ordinário e o terrível. O processo gradual e perigoso pelo qual atos de crueldade e injustiça se tornam tão comuns que são aceitos como parte da paisagem cotidiana, corroendo nossa sensibilidade moral. É quando a brutalidade se disfarça de normalidade, exigindo algo impossível de ser redimido. Um jardim de horrores, plantado no inferno.
“Zona de Interesse”, dirigido por Jonathan Glazer, é uma obra cinematográfica que se destaca pela sua habilidade em explorar a chocante banalização do mal. Situada no cenário sombrio e inquietante de Auschwitz, a narrativa mergulha no cotidiano aparentemente mundano de uma família ligada ao regime nazista. O filme se distancia de abordagens convencionais sobre a Segunda Guerra, optando por uma representação que transcende o visual e se instala firmemente na mente do espectador, trazendo uma tensão sufocante.
Glazer habilmente evita os clichês do gênero, optando por uma abordagem sutil e perturbadora. Não há nenhuma violência gráfica e cenários devastadores no âmbito literal; em vez disso, somos confrontados com a normalidade grotesca da vida em meio ao horror. O jardim florido e os risos das crianças contrastam vividamente com os gritos abafados que ecoam das proximidades do campo de concentração. É uma colisão de mundos que se choca não apenas na tela, mas também na consciência do espectador, que é forçado a confrontar a brutalidade da indiferença.
O elenco, liderado por performances notáveis de Christian Friedel e Sandra Hüller, dá vida a personagens que encapsulam a desumanização e a complacência do mal. O general Rudolf, interpretado por Friedel, encarna a crueldade burocrática, tratando o genocídio como uma tarefa mecânica a ser cumprida, enquanto a esposa, representada por Hüller, personifica a cegueira voluntária de uma vida de luxo.
A trilha sonora e a sonoplastia são elementos cruciais na construção do clima opressivo do filme. A combinação de sons angustiantes e uma trilha sonora penetrante serve como um lembrete constante da monstruosidade subjacente, mesmo quando uma bela paisagem está em cena.
A cinematografia, com sua câmera fria e distante, amplifica a sensação de voyeurismo, como se estivéssemos testemunhando um reality show macabro. Essa abordagem estilística reforça a ideia de que a banalidade do mal não é apenas uma questão histórica, mas também uma realidade contemporânea, que continua a persistir em diferentes formas ao redor do mundo.
Ao final do filme, somos confrontados com um relance do presente, exibindo o campo de concentração como um museu, onde a limpeza das cinzas remanescentes e a exibição dos pertences dos mortos são tratadas como rotina. Essa cena traz de volta os arrepios e serve como um lembrete sombrio de que a humanidade ainda não aprendeu muita coisa com os horrores do passado, e que zonas de interesse similares continuam a existir, muitas vezes disfarçadas pela conveniência ou pela complacência.
“Zona de Interesse” não é apenas um filme sobre o Holocausto; é uma meditação profunda sobre a natureza da maldade humana e a capacidade do ser humano de normalizá-la. Uma experiência sensorial arrebatadora, trazendo o lembrete contundente de que, enquanto existirem certas zonas de conforto em volta do horror, o inferno na terra seguirá cada vez mais nutrido e sólido. Com sua provocação moral e capacidade de extrair reflexão, o filme de Glazer se destaca como uma obra de arte que espanta e perturba, deixando uma ardência entontecedora na consciência de quem o assiste.
Porque se não estendermos a nossa visão para um além, estaremos limitados a nossa própria cegueira.